domingo, 18 de fevereiro de 2024

Ainda dou um caldo

Eu já começo esse texto inconformada, preciso dizer. Honestamente, eu tenho apenas 36 anos, e apesar de a sociedade já me considerar uma jovem senhora, eu sinto que ainda dou um caldo. Um bom caldo, eu diria. Acontece que eu sempre tive muita enxaqueca e depois de anos convivendo com a dor e os incômodos que vêm a reboque das crises, encontrei uma neurologista que me propôs um tratamento com remédios contínuos. E esse tratamento deu super certo. Melhorei à beça e, posso dizer hoje que sou uma pessoa que tem dores de cabeça bastante esporádicas. Mas, passados alguns bons anos, me vi novamente assolada pelas dores constantes. E você já deve estar se perguntando porque que que eu estou falando de enxaqueca. Calma, eu tenho um ponto e vou explicar. Depois de muita insistência do Ray e de um acidente que escancarou a derrota que é ser uma mãe cansada - em que numa madrugada, quando levantei para amamentar o Joaquim, e eis que sento no meu óculos e quebro ele bem na haste - me rendi e agendei um oftalmologista. Afinal, ia precisar de um óculos novo e era mesmo melhor refazer o exame e ter certeza que o meu grau não mudou. Ray, por sua vez, tinha certeza que o retorno da minha enxaqueca estava associado a minha vista. Para ele, tinha algo que precisava ser ajustado. Eu, como uma teimosa disciplinada que sou, me rendi e agendei a consulta. Mas, agendei ainda incrédula. Na minha cabeça, o retorno das crises estava associado ao fato de eu estar sempre com muita coisa na cabeça, especialmente agora que o Joaquim nasceu. Chegou o dia do médico. Sempre gosto de ir a médicos no Largo do Machado, bairro próximo ao bairro onde trabalho, pois lá tem um comércio ótimo, além de ser um bairro bastante charmoso. Farmácia, feirinha, barracas de todos os tipos. Cheio de gente. Eu também procuro agendar os médicos por volta do horário de almoço e, assim, ainda aproveito para ver algumas coisas interessantes lá pelo bairro. Desci do metrô, apenas uma estação de distância depois do meu trabalho, e caminhei alguns poucos metros. Logo já avistei a barraca dos biscoitos amanteigados. Escolhi alguns para mim e outros para o Ray, já que ainda tinha alguns minutos antes do horário agendado para a consulta. Caminhei animada pra rua do consultório médico, que ficava muito próxima ao Largo. Os biscoitos me deram um animo e me fizeram esquecer, por alguns minutos, que eu estava descrente de que a ida ao oftalmologista ia resolver meu problema das enxaquecas. Chego no consultório, faço o protocolo de atendimento pelo plano de saúde, um ritual que inclui entregar a carteirinha e a identidade para recepcionista e sento para aguardar minha vez. Pego um café - e naquele momento eu percebo que, cada vez mais, não dispenso um cafézinho - e aproveito para já beliscar um biscoitinho de canela que comprei na leva de compras da barraca de biscoitos. Uma delícia. Chego a pensar que deveria ter comprado alguns gramas a mais, afinal, o preço era ótimo. Eis que o médico, doutor Leonardo, abre a porta e me chama. Entro, meio enrolada entre a sacola de biscoitos, a bolsa e o óculos remendado com cola do tipo super bonder. Ele me pergunta como eu estava, eu procuro o exame antigo na bolsa, feito por ele também, e entrego explicando que meu óculos quebrou, mostro onde quebrou e a colagem que fiz - algo que depois achei um tanto desnecessário- e digo que oportunamente gostaria de fazer um check up antes de mandar fazer um novo óculos. Ele ouve atentamente e na sequência me pergunta se eu estou enxergando bem ou se tenho alguma queixa. Ai nessa hora, sinto o Ray como um duende aparecendo no meu ombro e dizendo: “- Bia, fala das enxaquecas”. Resisto um pouco, mas a imagem dele reaparece como num filme de sessão da tarde e decido, então, relatar. Narro que tratei a enxaqueca, mas que senti que ela voltou e friso que meu marido acha que poderia ser algo relacionamento a minha vista, mas que eu não acho que seja. Faço questão de dizer que não acho que seja. Nessa hora, percebo que a implicância com o marido que estava tentando cuidar de mim se faz presente mesmo longe dele e penso: será que estou ficando uma jovem senhora rabugenta? Na sequencia, doutor Leonardo me pergunta quanto anos eu tenho e eu respondo que estou com 36. Ele me olha um tanto surpreso, e penso: tá vendo, ainda dou um caldo, ninguém diz que eu já tenho 36. Ele me convida, então, pra ir para as máquinas de exames. O consultório dele é muito bem equipado, algo que gosto muito. Faço os exames inicias para aferir a pressão dos olhos. Tudo certo. Chega a hora mais temida por alguém que, apesar de ser uma jovem senhora, é embananado, que é a hora de sentar na cadeira e ler as letras no fundo da sala. Sempre me atrapalhei demais nesse exame até encontrar o Dr. Leo, que parece ter um maior traquejo para conduzir os pacientes confusos, como eu. Ele, inclusive, corrigiu um óculos meu que fiz com outro oftalmologista em que acabei errando o grau para mais. Santo Dr. Leo. Sento, ele me pede para tirar os óculos e ler as letras no painel ao fundo da sala, projetadas de um computador. Rapidamente respondo que sem os óculos não consigo ler absolutamente nada. Ele sempre faz isso, acho que é para testar se alguma coisa melhorou em relação ao grau antigo. Mas nessa hora, lembro bem do peso dos 36 anos, pois nada melhorou. Ele coloca, então, o grau correspondente ao meu óculos na máquina e me pede pra ler a letras projetadas na parede. Leio tudo, tranquilamente. Meu principal parâmetro são as letras mais miúdas. Quando consigo lê-las, sei que está bom. Ele aumenta e diminui os graus entre diferentes lentes e chegamos a conclusão de que o grau para longe, a tal da miopia, permaneceu o mesmo. Ai, pensei: tá vendo, Ray, te disse, não era isso. Ali era o meu momento. Mas, quando ameaço a levantar, ele me pede para esperar e pega um papel acartonado com uma tela de celular impressa nele e coloca bem perto do meu olho, com o mesmo grau para longe na lente da máquina e me pergunta: "- Está dando pra ler bem assim, ou está embaçado?". Nessa hora, sinto um risinho no canto da boca do médico. O desgraçado já sabia a minha resposta. Olho em pânico para o papel e sinto as letras um pouco embaçadas. Aquele procedimento era novo e eu estava completamente abismada. Não esperava por aquele golpe da vida. Respondo meio gaguejando: "-Tá um… Bom… É... Tá um pouco embaçado.". Ele muda a lente e fala: “- Assim melhorou?”. Que ódio. Melhorou muito. Respondo murcha: “- Melhorou”. Dali ele testa mais umas duas outras lentes e chegamos a conclusão que a primeira era mesmo a melhor. Ele levanta as lentes da máquina, me olha e diz: "- É, Bianca, você está com a vista cansada. Você já tem 36 anos, isso é perfeitamente esperado. Ainda não chega a ter a necessidade de um óculos multifocal, mas você precisa de uma lente especial para te dar um conforto maior. É, por isso, que você está tendo essas dores de cabeça". Eu só captei o multifocal de tudo que ele disse, e respondo já em pânico: "- Olha, Dr. Leo, eu sou muito embananada e não tenho condições alguma de usar óculos multifocal. O senhor vai precisar me dar duas receitas separadas, uma para cada óculos". Ele responde: "- Calma, Bianca, não é multifocal ainda. É uma lente especial, não tem aquilo de olhar para baixo ou para cima.". Eu penso: ainda? Ainda? Esse cara não pode estar falando sério. Meu Deus. A gente se dirige para a mesa dele novamente, ele explica que é uma lente da categoria monoplus. Na hora eu pensei: vai ser uma fortuna. Ele frisa a importância de fazer essa lente para o meu caso. E explica novamente que meu grau para longe não mudou, mas que eu já tenho sinais de vista cansada. Vista cansada. Eu senti que nessa hora não consegui evitar e bufei alto. Ele riu e falou: "- Fica calma, é assim mesmo". Pego a receita, agradeço com um sorriso meio murcho e saio, indignada. Antes mesmo de sair do prédio do consultório eu já pego o celular e mando um áudio para o Ray: "- Tá satisfeito? Tô com vista cansada e vou ter que fazer um óculos especial.". Como se a culpa fosse dele. Mas, eu precisava desabafar. Ray ri, já conhecendo bem a mulher que tem e diz: - "Calma, amor, você ainda dá um bom caldo". Olho pra tela, penso em responder, mas sigo em direção ao Largo para pegar o metrô e voltar ao trabalho. Termino a conversa com ele ainda irritada, sabendo que não havia mais nada a fazer a não ser aceitar os desígnios de ser uma jovem senhora. Confesso que naquela hora duvidei se ainda dava mesmo um caldo. Será? Era a pergunta que ecoava. Algumas semanas depois, eis que o óculos novo chegou. Um mundo novo se abriu. Dr. Léo estava certo. Era mesmo vista cansada. Escrevo essa crônica já com os óculos com a tal lente especial e confesso que estou muito contente em perceber que estou enxergando bem melhor de perto, e que, apesar da vista cansada e do peso de ser uma jovem senhora,  ainda tenho muito caldo para dar. Viva a lente monoplus. 

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Xangô, me perdoe

  

E mais uma vez a vida veio evidenciar o quanto um diploma de doutorado deixa a desejar no mundo real. E hoje, eu trago aqui uma prova de que o doutorado também deixa bastante a desejar no mundo espiritual. E talvez isso seja ainda mais preocupante. Fofoca que envolve espiritualidade, ou melhor dizendo, a boa e velha macumba, todo mundo gosta, né? Então, vamos a história. Tudo começou com um recado vindo de uma entidade. Pra quem não sabe, entidade são espíritos que, por vezes, incorporam nas pessoas para trazer recados, avisos ou conselhos. Importante ressaltar que em nenhum momento pedimos recado algum, mas, o recado foi dado por uma vovó, e eu, que não sou boba nem nada, achei prudente prestar atenção. Afinal, tu vai duvidar do santo? Porque eu não vou. Desse recado eu parei em dois centros. E nem estou falando do centro do Rio, mas centro de rituais. Mas, vou me ater a vivência no segundo centro, que foi mais emocionante, para dizer o mínimo. Depois do tal recado, e de uma sucessão de fatos esquisitos na nossa vida, Ray, parou num jogo de Búzios, que se desdobrou na necessidade de participar de um ritual. Um não, vários. E os recados que recebemos da primeira vez juntos e, na segunda vez quando o Ray foi sozinho no jogo de Búzios, envolvia a mesma coisa: nosso casamento. Por isso, os dois tinham que participar do que estava por vir. Acordamos cedo, afinal, centro bom é centro longe. O centro ficava localizado depois do centro de Nova Iguaçu, outro município no estado do Rio de Janeiro. Pelo menos duas horas de viagem. Chegamos lá, fomos muito bem recebidos e convidados a entrar e esperar. Na sequência, fomos avisados que o pai de santo já vinha. Demorou a bessa e nada do pai chamar. Minha sogra, que nos acompanhou, ciente da nora que tem, aproveitou o tempo livre que tínhamos pra ir me brifando: “- Minha filha, vai ter momentos em que você vai ter que chutar, aí você tem que imaginar que está chutando tudo de ruim da sua vida.”. Escutei e acenei com a cabeça: “- Deixa comigo.” - afirmei. Também disse que depois do ebó - já explicarei do que se trata com detalhes – eu teria que pular por cima das coisas, sem olhar pra baixo. E frisou que não olhar para baixo era muito importante. Acenei novamente e anotei tudo mentalmente. Chutar e pular sem olhar pra baixo. Tranquilo, pensei. Dali, o pai chamou. Joguei Búzios. Búzios é um jogo de adivinhação que é guiado por umas conchas, os tais búzios, tipo conchinhas do mar. Pelo que pude me informar, a lógica do jogo de Búzios envolve a matemática de entender quantas contas caem viradas pra baixo ou pra cima e sua disposição na mesa. Quando li isso achei o máximo. Mas, voltando aos Búzios, ao final do jogo o pai me disse: “- Será feita uma oferenda, um ebó e uma firmeza da sua cabeça”. Concordei e acenei positivamente: “- Claro, pai”. Respondi, sem fazer ideia do que se tratava, mas como já expliquei em outras histórias, professor tem esse cagoete. Ele afirma as coisas sem fazer ideia do que se trata, e então, só depois ele resolve os desdobramentos das suas afirmações impensadas. Depois de agir com normalidade para aquele universo completamente novo, repeti mentalmente comigo: chutar e pular sem olhar pra baixo. Moleza. Fomos pro primeiro ritual, e nele minha ignorância já ficou completamente escancarada. Ao chegar no local onde seria feito, dentro do terreiro mesmo, graças a Deus, porque colocar uma farofa na esquina tá longe de ser uma das minhas habilidades, tirei o chinelo em sinal de respeito e fechei os olhos. Já cheguei tomando esporro do pai de santo, que falou firme “- Abre o olho!”. Opa. Abri o olho e a moça que estava o ajudando, muito gentil, riu de canto e continuou cantando umas músicas em iorubá, língua africana muito curiosa. E eu quietinha, a essa altura, já sem entender uma palavra do que estava sendo dito ou feito. Do nada, ela vira e fala pra mim: “- Vai, agora chuta”. Pensei imediatamente: isso aqui eu sei. Chutei com tudo. Na sequência, ela me diz: “- De novo!. Eu chutei novamente, com a mesma perna, óbvio. Sou destra, ué. Dali, pela expressão dela, eu já senti que tinha fugido do script. Mas ela, me olhando com um olhar meio piedoso, calou o que passava na sua cabeça e disse: “- Pronto, minha filha, vai pra lá” - quase me empurrando e apontando o novo lugar que eu deveria ficar. Depois, parados num canto, o pai pergunta, apontando pro Ray: - “Fala seu nome todo”. Ele responde: - “Ray Pavão”. Na sequência, o pai vira pra mim e fala: “- Agora o seu”. Eu, que não sou boba nem nada, acompanhei o relator, e falei meu nome de guerra também: “Bianca Medeiros”. Acabamos o primeiro ritual. Ufa. Será que passei? Pensava. Minha sogra, que assistiu a tudo de longe, já me chama rindo: “- Minha filha, eu não te falei que era pra chutar?”. E eu imediatamente me defendi: “- Ué, mas eu chutei!”. Ai ela, rindo: “- Com as duas pernas, Bia”. E depois completa: “E vocês, cara, ao invés de dar o nome todo, informam o nome de guerra. Não pode isso gente, é o nome TODO. Nessa hora eu inevitavelmente penso no doutorado: serve pra nada, cara, eu falo. Mas, também passo imediatamente a me preocupar com o próximo desafio, afinal, agora eu preciso gabaritar o ebó, para me redimir com os erros na oferenda. Preocupada com os rumos que tudo estava tomando, muitas coisas passam na cabeça a essa altura: meu Deus, será que vão aceitar a oferenda mesmo eu tendo errado as coisas? Será que existem muitas Biancas Medeiros? Será que vão me achar? Eu deveria ter dito Medeiros Pavão. É muito mais específico. Nossa, que mole que eu dei. Tudo culpa do Ray. Espero sinceramente que aceitem. Bom, mas eu tinha que continuar. Esperando o ebó terminar de ser preparado, Ray foi na frente, porque ele é o mais velho e assim manda o rito. E eu não podia ficar olhando muito o que estava sendo feito com ele, pois dentro da crença, o ebó é um ritual de limpeza e existem muitas energias carregadas ali. Esperei minha vez mentalizando: pular, sem olhar pra baixo. E, então, chegou minha vez. Frio na barriga, mas vamos. Para participar de um ebó, o pai te explica um dia antes, que você precisa estar com uma roupa velha, pois ao final, você vai jogar aquela roupa fora com todo o carrego que sobra depois do ebó. Gente, o ebó é uma humilhação. Você caminha até um local dentro do terreiro que está todo marcado no chão, com traços e desenhos de giz. A mesma moça que me mandou chutar, me pediu para parar na frente dela, em cima de uma estrela desenhada no chão e ela ia recebendo as comidas pela lateral esquerda dela, que vinham sendo repassadas por outras moças que estavam ajudando. O pai participava cantando. Quando as comidas e os preparos chegavam nela, ela ia passando em mim. E aqui a gente está falando de bolinhos de todos os tipos. Pensa na moça esfregando bolinho na sua cara. Do nada eu sinto um treco na minha cabeça e penso; porra, tacar terra é sacanagem. Depois descobri que era uma farinha. Toca a vir bolinho. Daqui a pouco eu olho, ela está metendo um peixe na minha cara. Peixe na cara, peixe no peito, peixe na perna. E passava todas as comidas no corpo todo, em pontos específicos e só depois, deixava os restos caírem no chão. E ali ia se formando o tal do carrego. E eu curiosa, às vezes, olhava pra baixo. E nisso, toma-lhe mais esporro: “- Olha pra cima”, dizia a moça puxando meu queixo pro alto. A àquela altura, eu devia estar com um cheiro pavoroso. E pensava, agora foi, né? Toca a vir mais terra. E eis que sinto um ploc na cabeça. E sinto um líquido meloso escorrendo. Sim, ela quebrou um ovo na minha cabeça. Ali, senti que a humilhação estava completa. Na sequência vem pipoca. Ai, na hora pensei: Ahhh porra, esse é o famoso banho de pipoca do bordão que brincam. Entendi. Já posso dizer que tomei banho de pipoca. Finalmente, quando já não tinha mais nenhuma comida pra esfregar em mim, ela vira e fala: “- Consegue pular?”. Àquela altura eu já até tinha me esquecido do pulo. Mas, quando ela disse, pensei: agora é meu momento. Meus amigos, eu dei uma olhadinha rápida pra baixo, só pra ter uma dimensão mais ou menos do tamanho de coisas que tinha que pular. Eu pensava: se eu cair em cima dessa merda eu ia ferrar com a minha vida pra sempre. Imagina, eu não podia nem olhar pra baixo, quem dirá cair naquilo. E fora que eu já tinha feito a oferenda sem dar o nome direito, enfim, era tudo ou nada. Eu posso dizer que respirei fundo e pulei com a minha vida. E aí, quando aterrissei, ela me olha nos olhos e fala: “- Isso!!!”. Abri um sorriso e pensei: gabaritei o ebó. Ufa. Dali, suja, podre e descabelada, você segue pra tomar um banho no banheiro do terreiro. Quando eu vou caminhando em direção ao banheiro penso: meu Deus, que doutorado de merda, eu nem me liguei que precisava ter trazido uma toalha. Abro a água, um gelo. Respiro fundo, olho pros lados, e penso de novo: porra, esqueci xampoo e sabonete. Como que eu vou tirar isso tudo do meu cabelo? Esfrego o cabelo na água gelada, uma moça bate na porta: “- Olha, o pai falou que o sabonete que você vai usar é esse daqui”. Era um sabonete preto. Agradeci duas vezes e pensei: ah nem fui tão errada assim, o sabonete era específico, eles também devem me trazer uma toalha depoisUfa. Esfreguei o cabelo, nada de sair aquela quantidade de comida. Quando fechei o chuveiro e ameaço a colocar a calcinha, vem a moça novamente: “- Acabou o banho?”. Respondi otimista, afinal, estava certa de que a toalha viria: “Acabei sim”. Ela responde: “- Tá, não coloca a roupa ainda, que vamos trazer o banho”. Tirei o pé da calcinha igual criança quando está fazendo besteira, bem rápido pra ninguém ver que ia me vestir antes do outro ritual e pensei: ué, banho? Achei que estava tomando banho... Mas, num rompante de sensatez entendi: ah, banho de ervas. Claro. Hum, vai ter banho de ervas. Beleza. A moça entra com uma bacia na mão cheia de ervas e um pouco de água e taca na minha cabeça. Confesso que fiquei um pouco irritada, porque foi difícil tirar as coisas do meu cabelo. Mas, como o cheiro era maravilhoso, me conformei. Passei do ovo para as ervas. Era a minha redenção. Na sequência a mesma moça fala: “- Pode colocar a roupa agora”. Aí saquei que não ia rolar toalha mesmo. Mas, eu já tinha passado por tanta coisa, que me vestir molhada era o de menos, gente. E, àquela altura, eu só pensava, meu pai amado, doutorado? Que doutorado, gente. Eu não sabia dar o nome todo na oferenda. Dali, o pai me levou para a firmeza na minha cabeça. É uma expressão usada para um ritual que te ajuda a fortalecer os laços espirituais com os orixás. Nessa eu tinha menos margem para erro. Fiquei deitada num quarto, em forma de conexão com aquela energia. Depois disso, o pai te levanta, que é quando ele te autoriza a ir embora. Sai daquela experiência grata, sem ter deixado meu olhar de pesquisadora de lado em nenhum momento, mas certa de que ele só me serviu mesmo para narrar a experiência em forma de crônica para vocês, afinal sigo na dúvida se aquela oferenda vai surtir efeito e se as entidades vão achar a Bianca certa.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Rejunte branco

Desde o dia que me formei dôtora eu já tava bem ciente que isso, ou título, não servia pra muita coisa. Os dôtores (com diploma, e não os médicos e advogados - sim, isso foi uma crítica) que me desculpem, mas doutorado não te ajuda a resolver os ”b os” da vida. E essa minha hipótese, para usar os termos de uma doutora que se preze, foi confirmada há dois anos, no dia que o Baruque me pediu para comprar um rejunte para o piso do box do meu banheiro. Esse texto não era sobre essa história, mas eu não vou perder a oportunidade. Baruque, meus caros leitores, é um cara com seus quase 2 metros de altura, ex PM, que faz todo tipo de conserto que envolva eletricidade, sendo este seu ponto forte, e todo o resto que se apresente. O famoso “faz tudo”. Chamamos Baruque para ajudar a trocar a configuração da nossa sala antes do Joaquim nascer. Eu queria trocar o reck e sofá de lugar para termos mais espaço. Isso envolveria pintar uma parede e algumas coisitas mais. Quando Baruque olhava a parede que seria pintada, identificou um vazamento entre o banheiro e a sala, e aí, meus amigos, começa a minha saga. Ray perguntou a ele se dava para resolver o problema que ele acabara de identificar e ele, que não foge de trabalho, confirmou imediatamente. Foi investigativo até o banheiro e identificou mais detalhes do problema. Com o diagnóstico na cabeça, disse que a gente precisava comprar rejunte acrílico, pelo que entendi, um rejunte específico para ser usado em áreas úmidas. Na sequência, me deram uma das missões mais desafiadoras da vida: “- Bia, vai lá então comprar o rejunte, enquanto eu termino de ajudar o Baruque a colocar o painel na parede” – falou Ray. Eu, imediatamente, proferi um bom e sonoro: “- Oi, eu vou lá comprar?”. “–Isso, Bia, você vai lá e compra, tem duas lojinhas que vendem material de construção aqui perto, se não tiver em uma, tem na outra” – repetiu com detalhes, me passando a missão. Já senti um frio na barriga, mas pensei, eu grávida - na época com cerca de 7 meses de gravidez - tinha certeza de que teriam misericórdia da minha ignorância, afinal, todo mundo se padece com grávidas. Mas, ao mesmo tempo, meu orgulho não ia me deixar sair dessa missão sem completá-la. Perguntei novamente o nome do rejunte. Anotei no bloco de notas do celular e sai na missão. Parei na primeira loja e pedi o tal do rejunte. Não tinha. Confesso que segui um tanto aliviada, mas sabendo que a missão permanecia em aberto e que algum desafio ainda poderia vir. Mas, ainda assim, caminhei confiante até a segunda loja. Entrei, saquei o celular e li exatamente o que estava escrito no bloco de notas: “- Moço, boa tarde, tem rejunte acrílico? Ele me responde rápido: “- Tem, sim, qual cor você quer?”. Olhei em pânico para o bloco de notas. Cursor piscando. Não tinha indicação de cor. Ninguém me disse a cor, gente. E agora? Pensei. Respondi rápido, para não deixar ainda mais evidente minha completa ignorância, falando quase na lata: “- Transparente.”. O atendente perguntou em tom de dúvida: “- Transparente?”. Reafirmei: “- Isso, transparente.”. Afinal, todo mundo sabe que um professor quando não sabe algo ou está em dúvida, primeiro responde qualquer coisa com convicção, depois confirma se a informação está mesmo certa. Como fui firme, ele já chamou um colega para ajudá-lo: “- Ô, Fulano, tu já viu rejunte acrílico assim transparente? A moça está precisando de um” Ai, o fulano responde vindo lá de dentro: “- Transparente? Ué... tem certeza? Nunca vi”. E então, os dois intrigados chamaram mais um atendente, e dali, já imaginem que já tinha se formado um rebuliço na loja. Afinal, a grávida tinha feito o pedido bem convicta. Comecei a ficar em pânico e percebi a proporção do que a minha resposta imprudente tinha feito. A essa altura eles já estavam pegando vários sacos de rejunte e lendo um por um em busca de um de cor transparente. Pensei, num lapso de sensatez, melhor eu confirmar isso. Saquei o celular e liguei para o Ray. Ele atende e falo:  “- Ray, a cor do rejunte é transparente, né?” Eu não ia deixar baixo, portanto, já começo afirmando. Afinal, aqui tem diploma de doutorado. Ele repassa a dúvida e repete em voz alta. Eu escuto Baruque ao fundo rindo: “- Transparente não existe, cara, é branco.”. Dali eu já era uma piada. Os dois riem. Ray desliga, mas eu ainda consegui escutar o Baruque ao fundo: “- Da onde ela tirou branco, cara...” rindo a bessa. Envergonhada, falo com o atendente: “- Moço, é branca a cor”. Ai ele imediatamente para, me olha e diz: “Ahh! Claro. Branco tem, sim. 30 reais.”. E continua: “- Poxa, você falou transparente, até fiquei preocupado.”. Rindo de canto. A aquela altura eu já era uma piada na loja também. Ri sem graça. Volto caminhando para casa com o saquinho de rejunte na mão e gravo um áudio pra Fê, que formou comigo, rindo da nossa ignorância para resolver coisas do mundo real. E assim, entre reformas e rejuntes, percebi escancaradamente como valorizamos pouco as pessoas que conseguem resolver problemas reais. Mas, mesmo depois desse episódio, do qual não tinha dúvidas sobre a inaplicabilidade do doutorado, fui pega novamente nos botes da vida. Mas esse bote, eu conto na próxima história.


terça-feira, 29 de junho de 2021

Tá tudo bem.

Instagram, feed, e-mails, "tudo bem, sim e você?". Nada disso fala muito sobre a gente. Não tem sentimento. Não tem a gente. São botões, são bordões, são processos. E onde está a gente nisso tudo, afinal?

A Lua em Peixes, conectada à Netuno retrógrado e à Júpiter nesses dias, nos lembra sobre nossos sonhos e nossos projetos. Qual parte de nós está indo em direção a eles? E estamos mesmo indo? Ou, estamos, apenas, vivendo no automático? 

Onde a gente encontra nosso fio da meada? Há felicidade nessa caminhada, ou a felicidade virou seu fim? Enquanto você não se encontrar com seus sonhos, ela é apenas utopia, e viver na utopia pode ser só viver no automático.



Status: automático

Liga o computador, abre o e-mail. Verifica se tem e-mail novo. Responde e aperta o atualizar. Aguarda o próximo. Ele não chega logo. Abre o instagram, envia um meme pra uma amiga. Escreve "hahaha", mas não riu tanto assim. Rola o feed pra ver as novidades do "reels". Qual a próxima dança da modinha? Que músicas estão em alta? Nada a entretém. Sai do instagram. Tem um insight sobre as políticas ambientais no Brasil. Pensa: - o Salles pediu demissão. Nada mudou. Tem vontade de escrever um artigo curto sobre suas reflexões. Abre o word, vê o cursor piscando. Lembra da agonia sobre a escrita, o rito, os argumentos. Desiste. Volta pro e-mail. Nada novo. Lembra que precisa terminar o livro da pesquisa de águas. Lembra de tese, sente agonia, respira fundo e tenta se convencer de que não é tudo isso. Não se convence. Abre o arquivo do livro e rele um parágrafo. Acha mal escrito e pensa em algumas palavras para aperfeiçoá-lo, sente preguiça. Respira fundo. Lembra da agonia de escrever a tese, de novo. Altera o parágrafo. Recebe uma mensagem no Teams da parceira de trabalho. Minimiza o livro e vai resolver questões administrativas. Passa algumas horas resolvendo as questões. Lembra do livro e sente agonia. Abre o arquivo que estava minimizado, vê o cursor piscando. Tenta ler mais um parágrafo, não encontra nada de interessante ali. Mas precisa continuar. Respira e altera uma vírgula. Falta tanta coisa ainda, pensa. Esse pensamento sufoca cada nova atividade. Dá 18h. Acaba o expediente, mas o seu expediente não acaba. Precisa terminar o livro, precisa estudar pra prova, precisa encontrar felicidade em algum lugar. Não termina. Não estuda. Não encontra. O cursor piscando é a analogia exata da sua vida. Há muito tempo no automático. Pisca, pisca, pisca. Não sabe como fazer o cursor parar de piscar.  

quinta-feira, 27 de maio de 2021

"- Alô, chama a Dôtora"

Passei quatro anos da minha vida tentando provar para mim mesma a minha intelectualidade. Será que foram mesmo só quatro? Até agora eu me pergunto, mas sei que não posso responder essa pergunta hoje. Mas me refiro aqui, especialmente ao meu curso de doutorado. Essa verdadeira empreitada. E olha que, tudo que eu não quero fazer ao chamar de empreitada é romantizar o processo. Porque a verdade, aquilo que ninguém te conta, é que esse processo tá longe de ser leve. Eu briguei comigo muitas vezes. Chorei, tantas outras. E, ao longo dos quatros anos, fui constituindo e alimentando, dia após dia, um sentimento crescente de insuficiência. Como que pode, né? Você está ali, justamente num processo de expressão "máxima da sua intelectualidade". Fulano(a) é doutor(a) - temos aqui uma frase de efeito. É certo que, em parte, o ambiente acadêmico te dá a faca e o queijo prontinhos pra você saborear a sua derrota, como a vingança, um prato que você vai esperando esfriar e come daquele jeito, frio mesmo. Mas hoje eu não quero me esquivar da minha responsabilidade e dizer: "É o sistema", porque eu sei que eu cultivei, como uma plantinha que eu regava rigorosamente às 9h da manhã, esse sentimento de dúvida, de insuficiência, de fraude. E como um vício, cada vez mais, eu duvidava de mim e afirmava, mesmo sem sentido que, aquilo não poderia ser bom ou mesmo suficiente. Passados os famigerados quatro anos, finalmente, eu fracassei de vez. O(A) caro(a) leitor(a) que me conhece, pode até indagar: "- Mas, Bia, você não pegou seu diploma?". E eu lhes respondo: "- Sim, eu peguei". Eu fui aprovada. Está lá escrito na ata de defesa. Tenho até diploma digital emitido pela UnB. Super moderno. Bonito e tudo. Mas, a verdade é que eu fracassei. Fracassei, especialmente porque permaneço sem encontrar sentido na minha intelectualidade. Que loucura pensar sobre isso. São quatro anos, quer dizer, foram quatro anos na ideia romântica de que "eu estava ali fazendo ciência" e ao final, foi atestada a minha capacidade num ato, quando todos os membros da banca, finalmente disseram aprovada. E eu digo finalmente porque realmente foi um processo teatral. Uma banca cheia de drama e enredo, como uma boa protagonista leonina que sou. Mas ao final, assinaram a tal ata. Ainda assim, eu hoje venho aqui e honestamente me pergunto: " - Essa doutora aí, assinalada neste pedaço de papel, realmente nasceu em mim?". Dizem que quando as mulheres engravidam, nasce um filho mas, não necessariamente nasce uma mãe. Aqui eu usaria a analogia pra me perguntar, será que essa doutora aí algum dia vai nascer? Ou, elaborando mais ainda, para não perder o costume da pesquisa, "- A defesa da tese faz nascer, verdadeiramente um doutor ou uma doutora?". Imediatamente penso, está aí um bom objeto de pesquisa! Obviamente, para quem tiver fôlego e estima, porque confesso que a minha anda mesmo em baixa. O fôlego, então, nem se fala. Mas quase que fatidicamente constato, pela empiria, mais e mais dificuldades de firmar esse nascimento. Até aqui tudo bem. Mas, e aí? Se essa doutora não vai nascer, por que, afinal, eu tracei esse caminho que, por vezes (ou muitas) foi tão tortuoso e até mesmo, perverso? É nesse ponto que eu olho pra trás e vejo como a gente se mutila tanto ao longo da vida. E ao mesmo tempo me pergunto por que somos tão complacentes com tantas coisa inaceitáveis vindas de amigos, familiares e até conhecidos, mas insistimos em ser tão duros com nós mesmos. Mas, enfim. Há ainda muito a elaborar e a problematizar. Dito isto, temos aqui um desabafo desarrumado. Um caos na escrita e nos sentimentos. Mas vim desnuda e sem maquiagem, porque fazia tempo que não encontrava comigo mesma neste ato que tanto amo que é escrever. Mas lhes garanto, meus queridos(as) leitores, há aqui muito sentimento e honestidade na tentativa de compensar o pouco rigor. Pra ser franca, acho que busco neste texto as pazes com a minha escrita. Ou comigo mesma. Esse relato, que demorou tanto pra sair, revela o quanto essa cicatriz ainda dói em mim. Mas ele foi fundamental. Está sendo. Agora fica a esperança de que, aos poucos eu possa ir retomando a sensação de tocar o teclado com os dedos sem culpa, sem extravios, sem peso. Que o fatídico dia, do doutoramento, que roubou de mim (ou tentou?) meu prazer pela escrita, seja apaziguado. Que a escrita volte a ser leve, despreterida, amável e essa fonte infindável e catalisadora de sentimentos. Mas não é um processo fácil (eu já disse isso, né?). Desculpe ser repetitiva. Mas foram necessários um pouco mais de um ano e uma boa conversa com meu filhote Rafa* (ou várias), para lembrar que eu sou apenas uma pessoa, com um ego e uma taça de vinho que quer, algum dia, se achar nessa bagunça contida na expressão da sua intelectualidade, da sua vaidade e da sua dificuldade de entender que sim, às vezes (ou muitas), somos mesmo insuficientes. E está tudo bem. Não ser suficiente, não ser aceita, tudo isso, faz parte do processo. Mas, ao final, preciso advertir-lhes. Não se enganem, meus amigos(as).  A academia é mesmo sedutora. Ocupar aquelas cadeiras, as cadeiras dos imortais, inquestionáveis, impecáveis, parece mesmo ser um luxo e uma massagem diária no ego. E sim, isso passa, já passou e continuará passando pela minha cabeça. A academia. Quando penso nisso, me pego questionando: "- Nossa, Bia, será que foi por isso que eu você se "lançou" em um doutorado?". Sinceramente, são tantos motivos pra um pesquisador(a) que vive de bolsa no Brasil que, fica difícil isolar os fatos. Mas, certamente, não passei ilesa nesse campo de sedução tão tentador. Tão hermeticamente arquitetado. Em algum momento, confesso, eu me vi sentadinha ali, perante uns dez ou doze alunos, completamente vidrados em tudo que eu falava. Elocubrando sobre a minha capacidade de mudar, verdadeiramente, a realidade de alguém, do nosso país, das nossas misérias, das nossas mazelas. E eu saia bem linda daquela aula, batonzão vermelho e falas perfeitamente encaixadas, pensando: "- Sou foda" (ding ding)". Cheia de si. Mas a realidade é que essa recém doutora (nem tão recém assim), continua sendo posta à prova pelos seus próprios percalços e fantasmas. Ela continua condicionada aos aceites de artigos que não recebeu. As recusas continuam doendo como doem em um aluno, em um amante, em um amigo e não, num imortal. Na verdade, doem mais do que eu gostaria. Essa recém doutora aqui continua franqueada a qualquer um, que sem qualquer mérito ou título, leia seus textos e diga em mais bom e sonoro tom: "- Não gostei, falta método", ou ainda "- Falta rigor científico". "- É muito descrito". "- Não serve para discussões aprofundadas e atuais sobre a ciência política" [...]. Por isso, lhe digo que fracassei. Um dia, talvez, eu escreva uma carta aos Programas de Pós-graduação, vestindo minha condição de doutora fracassada, mas também enganada e diga: "- Vocês estão errando muito feio na condução dos processos seletivos. Não é por falta de bibliografia estrangeira, ou aderência da bibliografia da prova de conhecimentos científicos aos temas que vêm sendo discutidos no Programa, mas vocês estão esquecendo de avisar uma coisa ESSENCIAL aos aspirantes a doutores. ESTÃO ERRANDO RUDE.  Está faltando dizer uma coisa simples, mas essencial, aos aspirantes a "dôtores" desse Brasil de meu Deus que é: "- Escuta, querido(a), a aprovação da sua tese não é a única, ou mais, a principal condição para você se tornar doutor(a), tá?. Fica ligadinho(a) nisso. O processo de "ser doutor" é íntimo, pessoal, dolorido e cheio de esquizofrenias que a academia te ajuda a alimentar. TEJE PRONTO(A)". Ao final, precisa perguntar também: "- Tem certeza que você vai topar?" E o candidato(a), na minha humilde opinião, deveria ter que assinar um formulário assinalando um X na opção "estou de acordo". A burocracia também tem seu valor, convenhamos. Um brinde aos doutores desse Brasil. Especialmente a nós, mulheres, que já carregamos tantas dores e estigmas, mas que, ao final, chegamos lá.


*meu querido amigo Rafa, doutor de si, que me ensina tanto a cada conversa carinhosa, sobre os filósofos que ele tanto ama, mas, fundamentalmente, a enfrentar as minhas dores, como um bisturi cirúrgico do bom escorpiano que é, sem deixar de ser gentil e acolhedor.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Eu não sabia que tinha me casado com o Drauzio

Cara, a gente casa... e junto, a gente fantasia um glamour, sabe?
Glamour, romance e lucidez.
Ai vem o coronavírus e acaba com tudo.
Meu casamento "tá" perigando.
Perigando pelo tal de corona. Coronavírus. Covid-19. Sars-COV2.
Tudo começou numa quarta-feira a noite, uma ou duas semanas depois da gente ter se dado conta que o coronavírus era um fato. Uma calamidade pública.
A gente não pode sair de casa. Quem tem casa, claro.
Mas tem coisa que não dá pra evitar, tipo: ir ao mercado.
A gente foi no mercado, então.
A gente eu digo eu e ele. Meu marido, Drauzio, quer dizer, Ray.
Voltamos com os produtos, legumes, embalagens, frutas. E a banana.
A banana da discórdia.
Ele, que nunca foi "adepto" de uma esponja. Ele que deixa o shortinho de dormir no banheiro e me irrita profundamente. Agora, está falando em lavar tudo, inclusive as bananas (mas guardar o shortinho que é bom.. sei).
As bananas? Eu pensei. Ah não, Ray... pelo amor de Deus... a banana tem casca, cara. Tudo tem limite.
Ele chegou do mercado igual aqueles memes do instagram. Não encostando em nada. Foi na nossa enorme área de serviço (cerca de 40cm²) e tirou quase toda a roupa (opa). Sabe aqueles spray de limpeza turbo? Só faltou...
Atacou a Maria.. quer dizer, o José (porque sou feminista) e saiu lavando tudo... embalagem de papel higiênico (quase molhou tudo). Mas quando chegou na banana eu gritei: ah não! não vai lavar a banana. Larga a BANANA!
Ele assustado, me olhou: "- Mas amor!?"
SOLTA a banana, cara. TUDO TEM LIMITE. Repreendi.
Saiu cabisbaixo. Foi pro banheiro tomar seu banho, triste.
Quase nos divorciamos.
Ontem voltamos do mercado de novo. Eu lavei a banana.
Vai que...
Eu amo esse homem. Mentira. Eu tenho medo do vírus.
É... tenho. Mas na verdade eu amo.
Mal eu sabia que tinha me casado com o Drauzio.